Não há dúvidas de que o primeiro passo para um planejamento de boa qualidade para a cadeia de valor é tomar decisões com bom senso. Mas, e quando essas decisões dependem de centenas ou mesmo de milhares de variáveis e restrições? E nos casos em que o processo é complexo o suficiente para ocultar as alternativas minimamente interessantes? E nas situações em que a escala produtiva faz com que pequenas alterações nos planos se traduzam em milhões de Reais?
Este artigo mostra que confiar menos no bom senso e apoiar as decisões de planejamento no uso eficiente de ferramentas analíticas é a opção mais segura para garantir os melhores resultados para a empresa.
Questionando o Bom Senso das Decisões
Há quase 15 anos venho trabalhando com consultoria para suporte a planejamentos complexos em áreas como siderurgia, papel e celulose, produção animal, têxtil, cimentos e bens de consumo, no mercado brasileiro e no exterior. A metodologia que venho defendendo e implementando nesse tempo todo é hoje reconhecida pelo mercado, com otimismo, sob a insígnia de Business Analytics e pode, de maneira superficial, ser resumida em:
- Soluções Prescritivas: baseadas em Otimização Matemática, que geram automaticamente as sugestões de planejamento, baseadas no atendimento de restrições e com objetivo de maximizar critérios de valor para as empresas;
- Soluções Descritivas: baseadas nas técnicas de Simulação Discreta de Eventos, que permitem antecipar as consequências de se colocar uma ou mais políticas produtivas ou logísticas em ação;
- Soluções Preditivas: Derivadas de modelagens estatísticas (ou métodos “caixa preta” como Redes Neurais), que têm por objetivo final estimar variáveis importantes dos processos decisórios a partir dos históricos de ocorrência dessas variáveis e de outros parâmetros correlacionados.
Ao longo desse tempo, as plataformas computacionais vêm evoluindo a um ritmo alucinante e permitindo que cenários cada vez maiores e mais complexos de planejamento sejam tratados por essas técnicas (MILANEZ, Eduardo M. 2010). Tenho acompanhado também, com grande satisfação, a evolução do mercado no entendimento e no uso cada vez mais frequente dessas ferramentas com base matemática na gestão das empresas. Verdadeiramente, o que há alguns anos era encarado como inovação distante ou pura diversão acadêmica (lembro com horror como, para concretizar as vendas de ferramentas analíticas – conhecidas simplesmente por Pesquisa Operacional à época, eram necessárias verdadeiras catequeses sobre os princípios da técnica utilizada e dos resultados obtidos com aqueles que haviam se aventurado com elas), hoje permeia com fluência o discurso dos gestores mais bem informados.
Independentemente da denominação dada a essas técnicas e da maturidade do mercado na absorção de ferramentas desse tipo, uma característica que perdura ao longo do tempo é a maneira como elas provocam mudanças de paradigma no processo de planejamento.
De cara, o papel do decisor, frequentemente associado à geração dos planos (e considerando o nervosismo de alguns mercados, à constante reprogramação) se desloca, felizmente, para a análise de cenários, atividade mais interessante às corporações, dado seu conhecimento das condições do mercado e do próprio Negócio e claro, à justificada limitação humana de tratar simultaneamente milhares de variáveis e restrições que atribuem uma característica combinatória à dura atividade dos planejadores.
Em segundo lugar, promovem um ganho significativo em governança corporativa, ao permitir a sistematização dos conhecimentos eventualmente dispersos em planilhas e nas cabeças dos heroicos decisores. Não é difícil perceber que a correta formalização das boas práticas de planejamento na forma de ferramentas analíticas garante a perpetuação do conhecimento na empresa, minimizando o impacto gerado pela rotatividade de pessoal capacitado.
Também importante é a progressão, produzida por ferramentas dessa natureza, do modelo empírico de planejamento, baseado apenas em viabilidade das operações, para o de maximização no atendimento de critérios (modelo otimizado). A capacidade de gerar múltiplas soluções viáveis, em tempo adequado às decisões a serem tomadas, permite que a escolha de uma solução de compromisso para o planejamento seja feita com base nos KPIs importantes para a empresa, o que vai muito além de encontrar soluções factíveis do ponto de vista operacional.
Mas, sem dúvida, o ponto fundamental nessa mudança é a forma como as soluções geradas por essas ferramentas questionam o bom senso dos decisores e põem em xeque falsas verdades que se propagam no tempo e tornam míopes as decisões corporativas. É exatamente sobre essa evolução que se baseia este texto. Tenho como ponto principal ilustrar como a abordagem quantitativa das ferramentas analíticas garante os resultados lucrativos que muitas vezes escapam das regras mais simples de planejamento. Para tanto, uso como lastro no restante deste artigo casos reais que venho vivenciando no mercado até o momento.
Os Sustos na Produção de Desmonte
Um exemplo crucial que cito em todas as minhas apresentações comerciais é o do consumo de rações na indústria de produção animal, mais especificamente na área avícola. Responsável por mais de 70% dos custos dessa cadeia (Embrapa, 2013), a administração das rações nos lotes alojados, para posterior abastecimento dos frigoríficos, tem no índice de conversão alimentar (relação do consumo médio de ração do animal, em um dado período de tempo, com o ganho de peso proporcionado) o pilar mais utilizado nas decisões de abate.
Em boa parte das empresas avícolas que visitei, as curvas estatísticas relacionadas ao consumo de rações indicavam uma diferença clara nas conversões alimentares dos lotes sexados. Os lotes de fêmeas eram significativamente menos eficientes que os de machos nas mesmas condições, isto é, as fêmeas reduziam as taxas de ganho de peso, para uma mesma quantidade de ração, com idade muito inferior às dos machos. Com base nesse comportamento, os decisores tinham como verdade absoluta a necessidade de abater os lotes de fêmeas sistematicamente antes dos lotes de machos, como medida para reduzir os gastos.
De fato, essa decisão faz sentido do ponto de vista nutricional e tendo como foco apenas o fomento avícola. Em contrapartida, ao se tratar a cadeia como um todo, essa decisão pode afastar a empresa das opções mais lucrativas.
A cadeia de produção animal é naturalmente complexa pela própria característica de desmonte da matéria-prima. Assim, por exemplo, para produzir peito in-natura, valorizado pelo mercado em certo momento, é necessário que compulsoriamente se encontre destinação para as coxas, moela e pescoço, por exemplo. Isso, sem contar com as dificuldades adicionais impostas pelos condicionantes de qualidade, pelos rendimentos variáveis, pelos constantes fechamentos dos mercados externos, por shelf lifes curtíssimos e pelas próprias limitações do parque produtivo. Nesse contexto, basear a escolha de abate dos lotes apenas no índice de conversão pode representar perdas financeiras consideráveis na cadeia.
A reconhecida complexidade no processo de planejamento dessa cadeia obrigou as empresas de produção avícola a investirem desde muito cedo em modelos matemáticos para suporte às suas decisões. Sem dúvida, o caso mais significativo nessa linha, hoje há mais de duas décadas de sua bem sucedida implementação, foi o da Sadia, líder absoluta do mercado avícola brasileiro à época e com grandes tendências à inovação.
Para perceber ganhos financeiros na ordem de USD 50 milhões nos primeiros 3 anos de aplicação (Taube-Netto, 1996), a empresa investiu em um framework de inteligência computacional composto por modelos otimizadores e de predição estatística.
O módulo de otimização (Taube-Netto, 1997) permitiu integrar as decisões de atendimento da demanda, de produção multi-planta e de determinação dos perfis de abate mais adequados a cada cenário de planejamento. A capacidade de interagir simultaneamente com os vários pontos de decisão possibilitou que alterações na dinâmica dos mercados, nas capacidades e disponibilidades produtivas e mudanças repentinas nas características dos lotes alojados se refletissem imediatamente nos outros elos da cadeia, ampliando o horizonte de visibilidade, auxiliando na antecipação dos problemas e acima de tudo, possibilitando reações no planejamento tão ágeis quanto as mudanças na cadeia que as fizeram necessárias.
Os modelos estatísticos, por sua vez, baseados em indicadores do fomento avícola (mortalidade, crescimento, qualidade do avicultor, etc) elevaram a previsibilidade das condições, ao longo do tempo, dos lotes de frangos em desenvolvimento no campo e garantiram a qualidade necessária à informação de montagem dos cenários de planejamento.
Considerando ainda que a empresa era responsável pelo abate de mais de 1 milhão de frangos por dia em suas unidades no Brasil, imagine o enorme incômodo inicial gerado no corpo de decisores quando, no início da década de 90, essa ferramenta demonstrou quantitativamente que suspender o abate em algumas dessas unidades por um dia traria ganhos financeiros expressivos. Por mais absurda e contraproducente que a decisão tenha parecido aos decisores, a parada forçada permitiu que os lotes alcançassem as condições ideais de peso e os perfis de qualidade necessários à produção do mix de SKUs mais rentáveis no atendimento da demanda colocada à época.
Os Enganos na Utilização dos Gargalos
Outro exemplo, notável pela sua recorrência, é o consumo da capacidade limitada de recursos gargalos segundo uma enganosa ordenação pela margem nominal dos produtos que a disputam. No jargão dos profissionais de Otimização Matemática, essa forma de coordenar o uso de recursos restritos é chamada de “Técnica Gulosa” e é conhecida por se basear em escolhas que tragam o melhor resultado imediato, mas que demonstram baixa qualidade no resultado global. Para uma ilustração nada complexa, mas efetiva, considere um recurso produtivo com disponibilidade finita de 1000 horas em um período qualquer.
O critério de produção segundo a ordenação pela margem nominal implicaria em produzir 111 unidades de um único produto A, se a margem unitária nominal e o consumo de capacidade fossem dados como abaixo.
Produto | Margem Unitária Nominal | Consumo de Capacidade |
A | $ 100 | 9h/unid |
B | $ 50 | 4h/unid |
C | $ 80 | 6h/unid |
Trata-se de um exemplo didático, e o leitor já pode ter percebido que ao ordenar o uso do recurso pela razão entre a margem nominal e o consumo de capacidade de cada produto já geraria um plano de produção otimizado (1 unidade do produto B e 166 unidades do produto C), mas os cenários reais de planejamento envolvem milhares de variáveis e restrições e, nessas situações, derivar regras que gerem soluções com qualidade equivalentes àquelas das ferramentas analíticas é uma tarefa praticamente impossível.
A grande armadilha na estratégia de ordenação de produtos pela margem nominal está no fato de que, em algumas situações, os produtos no topo da lista são aqueles que utilizam a disponibilidade dos recursos gargalos de forma proibitiva. Muitas vezes, um mix de produtos com margens nominais menores é mais lucrativo para a empresa porque utiliza os recursos escassos em menor intensidade.
As Surpresas nas Análises de Malhas Logísticas
As grandes obras que tomaram corpo no Brasil em consequência dos Planos de Aceleração de Crescimento divulgados pelo Governo Federal, assim como em função da proximidade da Copa do Mundo de Futebol de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, geraram impactos óbvios nas estratégias de expansão e de cobertura de mercado das empresas cimenteiras no país.
Como o perfil de atuação das empresas nessa área envolve operações por todo o país, análises de expansão de malha são baseadas na discretização do território em mesorregiões. Alterações de estrutura em uma mesorregião, seja pela expansão de capacidade em plantas existentes, pela aquisição de novos ativos ou por desinvestimentos na malha, refletem rapidamente nas demais, gerando a necessidade de adaptações na operação nacional como um todo. Assim, como ilustração, a implantação de uma nova planta produtiva em uma dada mesorregião possibilita o atendimento direto de um mercado que anteriormente era realizado por outra ou por uma combinação de outras. Em consequência direta, essas outras plantas passam a atender outros mercados e o efeito se propaga em toda a distribuição. Não é preciso muito esforço para verificar que o mesmo efeito de propagação ocorre também na logística inbound, na associação e desenvolvimento de fornecedores, no mix correto de produto por planta, etc.
Por várias vezes, nas discussões de pré-venda de análises de malhas logísticas que envolviam o uso de ferramentas analíticas, enfrentei defesas inflamadas sobre a simplicidade das decisões a serem tomadas. Subestimar a complexidade desse tipo de desafio é comum e frequente, mas representa um risco à aderência e qualidade das decisões que, via de regra, envolvem investimentos significativos.
As intricadas regras tributárias que incidem nos transportes interestaduais já fazem com que a óbvia decisão de associar os atendimentos de um dado mercado às plantas produtivas mais próximas, como medida de minimização dos fretes, caia por terra. Os diferentes incentivos, tributos e taxas de nossa legislação fiscal “deformam” o mapa do país e obrigam que as análises de investimentos nas malhas logísticas considerem simultaneamente os custos logísticos e as tributações, configurando um enorme desafio para os decisores.
Perdi a conta de quantas vezes presenciei o desconforto de alguns decisores dessa indústria, habituados às regras e ferramentas tradicionais de decisão, ao se depararem com planos de expansão muito lucrativos que geravam soluções de atendimento bastante controversos como, por exemplo, ter uma planta produtiva e um mercado ativo em uma mesma mesorregião e o atendimento da demanda ser realizado por uma planta localizada no Estado vizinho. Esse efeito é comum em análises conduzidas à luz do trade-off entre os custos logísticos, custos produtivos e as tributações incidentes nas operações. É exatamente nesse balanço entre os critérios que condicionam as decisões de malha o ponto fundamental de atuação das ferramentas analíticas de suporte à decisão.
Mais recentemente, participei da geração de resultados igualmente controversos de um estudo para revisão de malha de uma grande indústria têxtil na Região Sul do país. Com operações produtivas também no Norte/Nordeste brasileiro, a empresa vislumbrava um vertiginoso crescimento no mercado para os próximos 5 anos e precisava adequar sua estrutura logística, ao longo desse período, para manter a aderência aos planos de expansão e para garantir a obtenção dos resultados projetados.
Isso se traduzia em análises de necessidade e de localização ideal de um ou mais centros de distribuição no Brasil, considerando a estrutura atual e o crescimento futuro previsto, que possibilitassem a reposição dos estoques e a distribuição aos inúmeros clientes, reduzindo os custos operacionais e simultaneamente mantendo o atendimento em níveis bastante agressivos. O desafio se estendia à determinação da volumetria de estoque necessária e do modelo jurídico de operação mais adequado a esses novos centros.
Para ilustrar a complexidade dessas análises, ao se combinar as variáveis logísticas (custos de frete, transit times, distribuição das plantas e mercados, picking versus cross-docking, etc), as variáveis tributárias (incentivos fiscais, ICMS, modelos fiscais de filial, de armazém ou de terceiro, etc) e as variáveis operacionais (capacidades produtivas e de estocagem, outsourcing, etc); os cenários alcançavam mais de 60 mil variáveis.
Não me surpreende o fato da ferramenta analítica, utilizada como base para a análise, exibir cenários de expansão de malha com reduções de custo acima de R$ 7 milhões anuais, quando comparados à estrutura física atual e ao modelo de operação corrente. Mas, foi necessária uma boa porção de horas adicionais com testes de robustez dos resultados para consubstanciar a idéia, nada trivial, de que o primeiro centro de distribuição no plano deveria ser efetivado no mesmo Estado da planta fabril que hoje responde por mais de 90% das distribuições ao mercado.
Semelhante ao caso das cimenteiras, esse resultado é consequência do tratamento adequado do desafio de balancear todos os custos da cadeia, desde a aquisição até a logística de distribuição, considerando inclusive os encargos tributários.
Considerações Finais de Bom Senso
Não é meu objetivo e nem é o mote deste artigo desvalorizar o bom senso como base nos processos de planejamento do Supply Chain. Não há dúvidas de que ele é a sustentação para a tomada de decisões assertivas. Em contrapartida, é preciso que se tenha a consciência de que a complexidade do processo de planejamento, gerada pela usual natureza combinatorial das decisões e pela frequente interligação entre variáveis não comensuráveis e restrições conflitantes, dificulta e até mesmo impede a identificação dos cenários de ação mais interessantes.
Os casos relatados neste artigo ilustram, em áreas diversas e nos diferentes níveis de decisão, como soluções triviais e alternativas aparentemente mais sensatas podem ser enganosas e conduzir a planos de ações que se afastem do que seria, de fato, lucrativo para a empresa.
Ainda tendo os casos como referência, o suporte de ferramentas analíticas na prescrição dos planejamentos e no tratamento das complexidades dos processos decisórios trouxe, via de regra, resultados diretos significativos. Mas, ainda mais importante, possibilitou aos decisores simular criticamente diferentes cenários de planejamento, atividade antes inviável pela necessidade de utilizar todo o tempo disponível na simples construção dos planos. É nessa ação crítica que deve estar focado todo o bom senso dos decisores.
Referências
EMBRAPA. Custo de produção de frangos de corte cai 2,80% em julho. 2013. Disponível em: <https://www.embrapa.br/busca-de-noticias/-/noticia/1498820/custo-de-producao-de-frangos-de-corte-cai-280-em-julho>. Acesso em: 20 out. 2018.
Medeiros Milanez, Eduardo, “25 years of O.R. in Brazil”, OR/MS Today, (Abril) 2010.
Taube-Netto, Miguel, “Integrated Planning for Poultry Production at Sadia”, Interfaces, Vol. 26, pp. 38-53, (Janeiro/Fevereiro) 1996.
Taube-Netto, Miguel, “Tecnologia das Decisões – Novo Paradigma”, Revista Agrosoft, Vol. 2, pp. 20-25, (Junho/Julho) 1997.